Honestidade intelectual e o terreno do conhecimento
Dimas Márcio Oliveira Trindade
Certa vez eu escrevi que há um terreno em nosso intelecto, no qual estão reunidos os nossos conhecimentos, uma espécie de condomínio do ser. Quando estamos dentro desse terreno, estamos acompanhados da verdade por nós apreendida e costumamos ter a razão a nosso favor. Todavia, esse condomínio no qual nosso conhecimento reside é limitado por muros; o terreno não é infinito. Atrás dos muros há a obscuridade e as trevas da ignorância — e é ali, fora do território de nosso conhecimento, que costumamos errar. Atrás dos muros, somos abandonados pela razão e agarrados pela ignorância, pela mentira e pela falsidade da opinião.
Como qualquer homem lúcido prefere a consciência e a visão à inconsciência e à cegueira, é ideal não nos evadirmos da região do nosso conhecimento, a menos que tenhamos correta e cuidadosamente expandido-a antes de prosseguir. Mas muitas pessoas não o fazem; elas preferem pular os muros e meter-se em meio a assuntos que desconhecem, jogando palavras insensatas e opiniões falaciosas ao ar, caídas nas trevas do desconhecimento, da mentira, do não-ser. Ora, o que leva alguém a empreender tal viagem errônea? Certamente uma língua inquieta e intemperante, que anseia em tagarelar caprichosa e inutilmente, quando deveria rigidamente silenciar-se. Isso se dá por uma tola e trágica ilusão: o pressuposto enganoso de que nossas opiniões devem ter alguma importância no mundo. Provavelmente a própria irrelevância e limitação devem ser aterrorizantes e difíceis de aceitar, mas são uma realidade. O nosso orgulho pode ser ferido e inflamado e isso pode ser um processo doloroso, porém é certo que um homem tenha a sensatez acima de si mesmo e com isso compreenda e aceite a verdade.
Compreender os limites do próprio conhecimento e, dessa forma, reconhecer a princípio a própria incapacidade e irrelevância, respeitando-os, é a fórmula dos sábios. Sim, porque o sábio costuma andar acompanhado pela razão e pela verdade, e isso ocorre, muitas das vezes, não por um largo território de conhecimento, mas pelo respeito aos limites desse território, seja o mesmo largo ou estreito. O sábio não é o que forja saber o que não sabe ou que tenta exibir uma bagagem que não tem; o sábio é aquele que reconhece e admite sua ignorância, limitando-se a falar apenas o que sabe e nada mais que isso.

A palpitaria é um fenômeno perturbador e emburrecedor: ele apaga os limites em troca da falsa sensação de importância; de que alguém esteja nos ouvindo. Evidentemente, as pessoas que praticam da palpitaria perdem de vista seus próprios limites, caindo compeltamente na ignorância, que é muito, muito maior que o conhecimento. Há limites para aquilo que o homem pode e deve saber — e tal limite faz parte da nossa humanidade —, mas não há limites para aquilo que não possamos conhecer. Tal é o simbolismo: o maior que cobre a terra é muito maior que a terra fixa no mar.
ResponderExcluirParabéns pelo texto, meu amigo. Mais um muito bem escrito e muito bem articulado.
Meu grande amigo, Carlos Alberto! Agradeço teu excelente comentário e o teu elogio!
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ResponderExcluirPrezado Dimas,
ResponderExcluirÉ uma alegria ver como alguém tão jovem já se aventura no mais misterioso terreno da filosofia, o infinito terreno do não-ser. Na minha juventude, eu sequer estava consciente disso. Bravo!
Certa vez um jovem fez uma pergunta qualquer a Schopenhauer, e o velho filósofo alemão respondeu apenas que não sabia do que se tratava. Então, o rapaz disse que achava que ele, Schopenhauer, era um grande pensador e sabia de tudo. Schopenhauer apenas respondeu: "O conhecimento é limitado, a ignorância, por sua vez, não tem limites".
Ser e não-ser são as grandes questões. O Ser (nosso terreno, como você diz) é nossa casa inescapável. Lévinas, um filósofo que adoro e fiz um TCC sobre as ideias dele, disse que o Ser é fundamental, pois precisamos construir nossa casa diante do Infinito aterrador (o não-ser). Nela temos nossa necessária tranquilidade (ainda que, por natureza do Ser, um pouco ignorante).
Porém, o grande debate filosófico é sobre o não-ser. É algo ruim? É também necessário? Lévinas diz que, vez por outra, o não-ser bate à nossa porta e nos assombra. Em um nível mais transcendental, o não-ser é o próprio Deus. Já o "Deus" que é totalmente conhecido, que está em nosso terreno, pode ser (talvez) apenas fruto do nosso egoísmo e egocentrismo.
Deus, por sua própria natureza, é algo que a mente humana nunca poderá compreender por completo, caso contrário não seria Deus. Deus, portanto, é um não-ser para nós, que vez por outra bate na porta do nosso Ser.
Para concluir, adoro um exemplo que muito me emociona e que eu mesmo, sozinho e pensando por meses, adotei como exemplo de minha monografia, coisa que surpreendeu meus professores pois nunca me viram como uma pessoa religiosa. Disse apenas que não achei melhor exemplo sobre isso do que nos Evangelhos. Como lhe disse, sou religioso sim, mas me recuso a colocar Deus em um vidrinho de uma religião.
O exemplo foi o nascimento de Jesus. Imagine que naquele dia do ano zero, estava lá o sujeito em sua casa, seu terreno, confortavelmente instalado, sabedor de tudo e de todas as coisas que lhe dizem respeito. Bate na sua porta um homem, sem casa, desesperado, procurando lugar para sua mulher grávida parir. O sujeito, vendo o transtorno e o desconforto disso tudo (do não-ser que tenta invadir minha casa) simplesmente se nega, e volta para sua vida tranquila de certezas. Lá fora, no Infinito do não-ser, junto aos animais, nasceu Jesus. Lá fora, no Infinito do não-ser, estava Deus. E todos lhe fecharam as portas de suas casas. O Ser não é necessariamente um conjunto de mentiras e ilusões, mas é lá fora, necessariamente, no não-ser, que está Deus.
Esta é apenas uma visão disso tudo, baseada em Lévinas, mas que adotei como minha também. Não se difere da ideia de Parmênides e se aproxima um pouco de Platão (mas não tanto). Em um nível de maior sinceridade, tudo isso pode ser uma grande bobagem, pois sobre Deus quase nada podemos dizer. É importante sempre jogar nossas certezas no lixo e sermos mais humildes. Para que um dia não fechemos as portas na cara de Deus.
Espero que esta minha humilde contribuição, que nunca assumirei como "a certa", lhe seja de alguma utilidade em suas ótimas reflexões. É apenas essa minha intenção.
Agradeço seu comentário, professor.
ExcluirPelo meu entendimento, o Não-Ser supostamente seria Deus porque Deus é um mistério, na medida do possível, claro. Então, Deus não cabe totalmente no terreno de nosso ser; nosso intelecto não pode abrangê-lo completamente. Nisso, ele acaba incorporando o que para nós seria o Não-Ser, pois não conhecemos.
O senhor pode me responder se minha compreensão está de acordo com o que o senhor disse?
Prezado Dimas,
ResponderExcluirVamos aqui abandonar o tom professoral. Estou apenas batendo papo, com prazer, com um amigo. É claro, é difícil achar amigos para bater papo sobre isso :D
Como te disse na escola, ser e não-ser são temas fantásticos da filosofia, pois exigem um pensamento lógico que se mistura com questões filosóficas e até religiosas.
Isto que lhe disse, que você me perguntou, é isso mesmo! SÓ que corresponde a um debate moderno sobre o assunto (apesar de suas raízes antigas). Para Parmênides "o ser é, o não-ser não é". A partir daí, novos filósofos pensaram sobre isso, mas sempre graças aos antigos.
Olha, tenho um post sobre isso, que aborda essa questão do ser nessa ideia de Lévinas. Aqui ó http://bit.ly/2HJLfyC , E tem esse também: http://bit.ly/2JQaLob
O que fica subentendido é que o "ser" é nossa casa, nosso terreno. Mas quando isso vira ideologia, vira a "divinização do ser" (tem esse explicação num dos posts).
Mas olha, tem uma coisa: a parte mais importante desse debate moderno sobre ser é simplesmente ajudar a pensar. Com correção e critério.
Sobre o Infinito que está além de mim, que Descartes chamou de Deus, bos parte do debate moderno iniciou com a terceira meditação cartesiana, que eu acho bela e brilhante, por isso digo que Descartes é muito incompreendido. Vou colocá-la aqui:
"Entendo pelo nome de Deus certa
substância infinita, independente,
eterna, imutável, sumamente
inteligente e sumariamente poderosa
e pela qual eu mesmo fui criado e
tudo o mais existente, se existe
alguma outra coisa. Todas essas
coisas são tais que, quanto mais
cuidadosamente lhes presto atenção,
tanto menos parece que elas possam
provir somente de mim."
— René Descartes
Por isso a base do meu último TCC foi "A relação entre Deus e o homem em Lévinas".
Mas repetindo: para isso serve a filosofia, para nos ajudar a pensar bem, e não para adotar como certo outros pensamentos. Se não nos incomodar, se não der um nó na nossa cabeça, não é filosofia, e´apenas ideologia que nos agrada e nos afaga. É Deus no vidrinho. E Deus também incomoda, como Maria e José incomodaram os moradores naquela noite.