Um esboço sobre Fé
Dimas Márcio Oliveira Trindade
A racionalidade está fortemente atrelada à virtude teologal da Fé. O sentido de Fé ao qual nos referimos não se aplica a apenas um grupo religioso, mas a todos os seres humanos dotados de racionalidade e de certas virtudes. Afinal, a Fé permanente em algo a que atribuímos importância — como (e é este o nosso foco principal no texto) a Lei Moral, em seu sentido mais comum, e as virtudes humanas (que são derivadas do cumprimento desta primeira) — estará, em diversos momentos, senão sempre, em oposição à perspectiva irracional e sua inconstância — a alteração contínua dos instintos e impulsos naturais.
O governo irracional de uma alma pode ser apontado por sua inconstância diante das condições externas. Se a situação provoca medo, esse medo torna-se o regente supremo dessa alma; se houver fome, a comida torna-se o Sumo Bem. Pretendemos, com esta observação, demonstrar que o Animal, no auge de sua irracionalidade e selvageria, é movido por estados de espírito, que são alterados constantemente de acordo com o meio externo. Os atos, os valores, a conduta não têm lastro em algo transcendente, mas são moldados tão somente pela ocasião.
Por outro lado, a racionalidade é caracterizada por sua solidez e permanência. O Humano, diferentemente do Animal, resiste aos puxões dos instintos, das emoções ou vontades instensas. A plena consciência e a sanidade andam sempre acompanhadas de uma insistente serenidade que possibilita o controle e a temperança — insistente, pois, mesmo que em meio ao caos dos acontecimentos e à desordem espiritual por eles produzida, ali estará ela, enquanto houver alguma atitude digna e decente.
E essa serenidade costuma ser resultante de uma virtude religiosa. Referimo-nos à virtude teologal da Fé. Podemos esclarecer esse conceito (de Fé), utilizando o seguinte sentido, que C. S. Lewis chega a abordar em seu Cristianismo Puro e Simples: "Mas a palavra Fé, no sentido em que estou empregando aqui, é a arte de aderir a coisas que a sua razão já aceitou, apesar de seus estados de espírito inconstantes, pois os humores vão mudar independentemente da visão que sua razão assuma."
Nesse sentido, a ordem da alma está intimamente relacionada à Fé; a Fé torna-se a afirmação da sanidade, o recipiente onde armazenam-se as virtudes. Vejamos que Platão dá atenção especial à essa solidez da crença (que aqui denominamos de Fé) para a educação dos guardiões d 'A República: "Então teremos de selecionar entre os nossos guardiões os homens que, submetidos a exame, pareçam acima de tudo crer ao longo de suas vidas que precisam positivamente zelar pelo que é vantajoso ao Estado, não aninhando absolutamente desejo algum de fazer o oposto." (412 d/e).
Após a discussão mais detalhada, ele enfatiza: "E visando a observar esses mesmos traços, teremos de submetê-los a trabalhos árduos, dores e competições." (413 d). Neste trecho, fica-nos entendido que, como teste para a Fé dos guardiões, estes seriam submetidos a inúmeras situações que modificariam seus estados de espírito. Seria interessante destacar que o mesmo acontece com cada um de nós ao longo de nossas vidas, pois, ao existirmos, submetemo-nos a inúmeros acontecimentos inesperados, bons ou ruins, que escapam de nossa vontade.
Dando sequência ao tópico, o filósofo grego conclui: "Então não seria verdadeiramente o mais apropriado designá-los como guardiões na acepção plena da palavra, vigilantes contra inimigos externos e amigos internos, de modo que aos primeiros faltasse o poder de causar mal ao Estado e aos segundos o desejo de fazê-lo?" (414 b). Aqui vemos que os guardiões, devidamente providos de Fé, haverão de perseverar incondicionalmente pelo bem do Estado. O que Platão denomina de amigos internos seriam os desejos e vontades danosos ao Estado, provenientes do estado de espírito provocado por certas ocasiões.
A Fé — repetindo: aqui entendida como a solidez e firmeza naquilo que é racionalmente compreendido — é a qualidade inerente ao ser humano detentor de verdadeira virtude e sanidade. Muito sabiamente afirmou o padre Tomás de Kempis: "O ferro é provado pelo fogo, e o justo pela tentação. Ignoramos muitas vezes o que podemos, mas a tentação manifesta o que somos". Ora, seria fácil para um homem mostrar-se publicamente, através de discursos, como justo e honesto, mas sua justiça e honestidade só serão comprovadas num momento oportuno, onde ele tem diante de si a oportunidade de secretamente violá-las para obter um grande benefício particular. Pois bem, se ele optar por preservar tais virtudes em sua postura, mesmo que perdendo uma grande oportunidade de beneficiar-se, podemos afirmar que ele tem, de fato, Fé naquilo que prega, e assim mostra-se um ser verdadeiramente racional, pois seu comportamento pauta-se em algo fixo e permanente — como é característico de um ser racional.
No entanto, suponhamos que ele não o faça, suponhamos que ele secretamente viole a justiça e a honestidade, visando o benefício particular: dizemos que tal homem não tem Fé em suas próprias palavras — o mesmo é, no fundo, um ser animalizado e irracional, que modifica-se tão somente pela ocasião, baseando-se (conscientemente ou não) em seus instintos primitivos.
Nesse exemplo vemos o pleno significado das palavras de Tomás de Kempis. O homem de nosso exemplo, no primeiro caso, fora realmente justo e honesto, pois tinha Fé em relação à justiça e à honestidade — e à importância dessas virtudes. No segundo caso, ele, como já dissemos, sempre fora um ser feito pelas ocasiões e irracionalmente controlado por estados de espírito, e o que ocorre é que a oportunidade — ou a tentação — apenas revelou esta verdade.
Tendo em vista o que fora posto acima, podemos observar e afirmar que tudo que seja feito sem Fé é logo desfeito pela ventania do tempo e dos fatos — mais precisamente, quando é desfeito é, também, revelado, pois sempre fora algo falso, a ocasião apenas retira a aparência contrária, ou seja, a aparência de verdadeiro. E tudo que realiza-se ou pronuncia-se com Fé apoia-se numa firme rocha e permanece intacto em qualquer situação, provando seu valor e sua verdade.

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