Os desamparados
Dimas Márcio Oliveira Trindade
"Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados" (Mateus 5:4), dizia Jesus Cristo no Sermão da Montanha. O significado dessas palavras — sobretudo "bem-aventurados os que choram" — é observado quando analisamos o que foi e como se deu a passagem de Jesus pela terra.
Antes de tudo, vejamos três pontos. Primeiro, quem, dentro da fé cristã em geral, é Jesus Cristo. Segundo, dado que saibamos quem é Jesus, o que aconteceu com Este em sua vida na terra. Terceiro, o porquê de o ter acontecido. E por último refletir-se-á sobre a suposta bem-aventurança daqueles que encontram-se em pranto.
Segundo a doutrina da Santíssima Trindade, Deus manifesta-Se de três maneiras distintas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Não nos convém no momento tratar sobre a Santíssima Trindade, mas apenas constatar o seguinte. Jesus Cristo, sendo o Filho, e portanto membro da Santíssima Trindade, é, sim, Deus. Em praticamente qualquer religião ou cultura, sabemos que Deus — sendo substantivo próprio ou não — seria uma força suprema que rege o Universo, criadora de tudo o que há, que condensa e é fonte de toda a perfeição existente, não sendo esta uma constatação de cunho religioso-pessoal mas de cunho semântico.
Jesus é, pensemos, o próprio Deus encarnado na terra. Por sua natureza divina e suprema, teria Ele encarnado como, por exemplo, um imperador poderoso? Vemos que não. Fora gerado no ventre da esposa de um carpinteiro, nascido num estábulo, criado no seio de uma família pobre. Em Sua vida debaixo do sol, ocupou-se em levar Sua mensagem — a exortação ao Bem, acima de todas as coisa — aos homens de sua época e na realização de milagres, não tendo, em momento algum, influência no meio político ou religioso e muito menos poder econômico.
No entanto é evidente que quando os homens se deixam levar pelos seus vícios e caprichos e abandonam a moral — que é o traço divino na alma humana — o próprio Deus haveria de desagradar. Tal como a justiça desagrada um homem desonesto; como a verdade desagrada o hipócrita e o mentiroso; como a beleza desagrada a alma desordenada; como a temperança desagrada o avarento; ou como tudo que é verdadeiramente belo e bom desagrada quem está imerso apegado aos seus vícios e caprichos. Assim Jesus desagradou os homens em sua época. E por esta razão, por ser o Deus legítimo, e portar-se como tal, tornou-se alvo da fúria de seu povo, sendo entregue ao Estado para ser crucificado.
Deus, a força suprema do universo, era agora um prisioneiro odiado que estava a ser cuspido, esbofeteado, chutado, xingado, alvo de deboche, nú, com uma cruz nas costas e uma coroa de espinhos na cabeça. Isso significava que Deus estava sendo derrotado pelos homens? Sua missão na terra havia fracassado? Se nos lembrarmos do valor semântico da palavra Deus, veremos o quão tolo é quem cogita a derrota divina.
Mas não seria, por acaso, absurdo um rei colocando-se a brigar mortalmente com os porcos pela lavagem? Do mesmo modo, um deus não poderia se apegar a algo ilusório, inconstante e perecível como os bens terrenos (o poder político, o dinheiro, os prazeres, as honras) — porque isso é incompatível com a natureza divina. Vejamos que a glória divina estende-se pela eternidade. E o poder daqueles que o crucificaram? Este voltou a seu estágio verdadeiro; tornou-se pó e cinzas; se desfez como um castelo de areia na tempestade do tempo.
Vemos também que, muito tempo antes de ser crucificado, Jesus, no deserto, teve a oportunidade de literalmente "dominar o mundo": "E o diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o diabo: 'Dar-te-ei a ti todo este poder e a sua glória; porque a mim me foi entregue, dou-o a quem quero'." (Lucas 4:5,6). Nisto vemos que não foi Jesus incompetente ou indigno da glória do mundo, e sim a glória do mundo que é indigna de ser apreciada por Deus. Não à toa, na passagem acima vemos que a glória dos reinos da terra pertence claramente ao diabo — sendo o diabo o pai da mentira, da falsidade e da ilusão, ilude os homens com seus falsos e inconstantes bens. Inclusive, no citado Sermão da Montanha, Cristo exorta as pessoas a desapegarem-se do mundo e dos bens materiais: "Não ajunteis tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem tudo consomem e onde os ladrões minam e roubam; mas ajuntai tesouros no céu, onde nem a traça nem a ferrugem consomem e onde os ladrões não minam nem roubam." (Mateus 6: 19-20).
Fora-nos necessário chegar até este ponto para que possamos refletir melhor sobre a razão pela qual são "bem-aventurados os que choram". Esses, aos quais Jesus Cristo se referia, são os que sofrem dura e constantemente, são aqueles aos quais o mundo castiga mesmo que sem razão. São aqueles que fatalmente encontram-se em desamparo, que não têm esperança alguma nesta vida. Essas mesmas pessoas, desterradas pelo mundo, são as principais convocadas ao Reino dos Céus. Seu sofrimento mostra que esta realidade passageira não lhes pertence, elas têm a dádiva, ainda que um tanto penosa, de não estarem iludidas com os bens da terra. E a desilusão quanto aos bens do mundo e aos seus prazeres efêmeros é o principal e mais dificultoso passo para a Vida Eterna.
Claro que deve-se levar em conta que esse desamparo, que abrange vários, senão todos, aspectos da vida, provoca dor, angústia, desespero, aflição, desânimo, agonia constantes em pessoas inocentes, torturando seus corpos e suas almas. Por isso apontemos também a parábola do rico e de Lázaro, contada por Jesus, na qual Lázaro, o mendigo que "desejava alimentar-se com as migalhas que caíam da mesa do rico; e os próprios cães vinham lamber-lhe as chagas" (Lucas 16:21), morre e é levado pelos anjos ao Paraíso, enquanto o rico, que "vestia-se de púrpura e de linho finíssimo, e vivia todos os dias regalada e esplendidamente" (Lucas 16: 22) também morre, mas é levado ao Hades, ao Inferno, em tormento eterno. O rico, ao ver Lázaro junto de Abraão, pede para que Abraão mande-o molhar o dedo na água, para refrescar sua língua, no entanto, Abraão o responde: "Filho, lembra-te de que recebestes os teus bens em tua vida, e Lázaro somente males; agora este é consolado e tu atormentado; e, além disso, está posto um grande abismo entre nós e vós, de sorte que os que quisessem daqui para vós não poderiam, nem tão pouco os de lá passar para cá". Lázaro nasceu miserável, ele não merecia os sofrimentos a que estava submetido, como também ocorre com muitos de nós. Mas, se o mundo injustamente o humilhou e o desprezou, o próprio Deus lhe consolou e não apenas por um tempo, mas eternamente. Vemos que tanto a glória quanto a miséria material, sendo injustas, duram um breve tempo, em contraposição à eternidade, sendo esta justa. A única força, se levarmos tudo isso em consideração, que leva um ser humano a preferir a vida terrena e os seus prazeres efêmeros antes da eternidade e dos bens celestes é oriunda de seus aspectos primitivos e irracionais; de seu querer, sempre momentâneo.
O episódio do mancebo rico, em Marcos, capítulo 10, nos dá um exemplo real do perigo que há nas riquezas e nos prazeres — perigo do qual os pobres e rejeitados pelo mundo estão de certo modo livres. O jovem mantia os preceitos divinos e os mandamentos, mas quando Jesus lhe disse que para alcançar a Vida Eterna era necessário abrir mão de seus bens, ele se entristece e se retira, desistindo da Eternidade. Jesus então diz: "Quão dificilmente entrarão no reino de Deus os que têm riquezas! (...) Filhos, quão difícil é, para os que confiam nas riquezas, entrar no Reino de Deus! É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha, do que entrar um rico no reino de Deus." (Marcos 10:23-25). Essa situação ilustra também uma passagem genial de Platão na República: "(...) o prazer é muito mais potente do que qualquer agente limpante." O prazer seduzira o jovem de tal maneira que o fez abrir mão da vida eterna.
Outra passagem de um outro filósofo, o romano Boécio, sintetiza de forma breve o que estamos a afirmar. Ele escreve em sua A Consolação da Filosofia: "Eis o que penso: a Fortuna é mais benéfica quando se mostra adversa do que quando se mostra favorável. Quando se mostra sedutora e atraente, está sempre mentindo com sua aparência de felicidade; a adversa, porém, é sempre sincera quando revela por suas reviravoltas seu caráter instável. Uma engana, outra instrui. Uma, ludibriando os homens com uma falsa felicidade, captura a alma daqueles que desfrutam de seus dons; a outra, pelo contrário, libera a alma fazendo-a ver a precariedade da sorte." Grande dádiva é estar na sarjeta do mundo porque resta, a quem assim se encontra, apegar-se aos bens eternos e desprezar os bens da terra. A sarjeta pode ser a escada que eleva a ovelha abandonada aos Céus, acima das traças e dos ladrões.
Os pobres, os que sofrem, os que são desamparados pelo mundo foram abençoados com a boa Fortuna. Eles são, mais do que os ricos e amparados, inclinados ao Reino do Céu; são eles que estão cobertos pelo sangue do Filho de Deus, que nasceu não num berço de ouro, mas num estábulo; que não fora um honrado imperador, mas um condenado à morte. Porque tudo que é eterno está além de toda a ilusão material com a qual o homem facilmente se perde. Não podeis servir a Deus e a Mamom (que seria um espécie de "deus" das riquezas) ao mesmo tempo (Mateus 6:24) e por isso Deus os concedeu a graça de não serem do interesse de Mamom, porque foram feitos para a eternidade, não para o gozo efêmero; foram feitos para o Reino de Deus.
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